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"Ainda estou aqui"


Quando estava concluindo o ensino fundamental, uma professora de História orientou um seminário sobre alguns períodos históricos do Brasil. Por sorteio, fui incumbido a fazer uma apresentação acerca dos anos de 1964 a 1985. Fui à biblioteca e saí de lá com três calhamaços a respeito do tema. Ao me debruçar pela primeira estudando sobre aquilo, senti-me angustiadamente aflito tentando entender se estava lendo uma ficção da literatura de horror ou tristemente desbravando o solo pátrio sujo de sangue fresco.


Escrevi laudas e mais laudas sobre os apontamentos dos autores daqueles livros, numa época em que essa era minha forma de pesquisar, ainda sem acesso a computador em casa.

Não fui o mesmo depois daquele seminário, foi o ponto alto da minha vida escolar e que quebrou algo dentro de mim. A partir daquele momento, sabia em que lado dessa história eu estaria.

Ontem pude ver "Ainda estou aqui", filme baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, também autor do forte "Feliz ano velho".

Durante os anos de terror, o ex-deputado Rubens Paiva, pai de Marcelo, foi retirado de seu lar por agentes militares e levado para um suposto depoimento. O que seriam algumas horas tornou-se o fim.

A família foi mutilada, assim como o seu próprio corpo, no silêncio do Estado e na frágil esperança do seu retorno.

Enquanto a mídia exterior divulgava o desaparecimento do célebre político, a matriarca se impôs como memória de resistência - Eunice Paiva, a mulher que engoliu o medo e a dor para lutar por seus filhos e enfrentar uma brava luta pela clareza.

Apenas em 1996, por força de lei assinada por FHC, o Estado emitiu a certidão de óbito de Rubens. E, conjuntamente ao dados levantados ao longo das décadas, com a instituição da Comissão Nacional da Verdade, em 2011, por Dilma Rousseff, entendeu-se mais sobre o que ocorreu.

Rubens Paiva foi barbaramente torturado e morto entre 20 e 22 de janeiro de 1971 nas dependências de um quartel militar. Seu corpo foi enterrado e desenterrado inúmeras vezes pelos militares, como tentativa de esconder a culpa do regime. Ao fim, seus remanescentes mortais foram lançados ao mar do Rio de Janeiro.

Uma demorada e necessária resposta à Dra. Eunice Paiva, que se tornou um baluarte internacional na luta em defesa dos Direitos Humanos, com forte atuação em favor dos povos indígenas, falecida em 2018.

O chão em que pisamos é tingido com sangue derramado em dor e agonia. Qualquer validação do suposto mérito de todo o horror é revela(dor) do que o povo brasileiro faz: matar.

Não esqueçamos de tantos, como Emmanuel Bezerra, natural de Caiçara do Norte, estudante da UFRN, que foi entregue aos militares e morto em tortura [com deferimento de um reitor conivente que dá nome a um hospital universitário de nosso estado].

"Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia"

15.11.2024

César Porpino

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